sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Crônica - O Sorriso do Morto

Que fosse enterrado com o corpo já que o finado gostava tanto. Por isso colocaram o objeto entre as suas mãos. Estava surrado, o lado de fora seboso, consumido, de tanto ser manuseado. O desgaste aparente deveria ser, por que ele fazia questão de manter o primeiro exemplar que ganhou, e isso lá se vai muitos anos. No trabalho mantinha-o à distância do braço. Carregava aquilo para todos os lados, inclusive aos ambientes em que não era comum utilizá-lo, - pouco lhe importava o local. De contínuo lançava mão, bastava lhe dar na telha. Sempre ao seu alcance, principalmente no bolso. Quando esquecia em casa, ou no escritório, voltava para apanhar.
A todo o momento estava a manejar para passar mensagens aos amigos. Na verdade tratava-o como se não pudesse viver sem ele. Alguns o consideravam um chato. Perdeu amizades, em conseqüência desse apego ao seu estimado. Mas, jamais precisou pedir desculpa por isso. Perdoavam-lhe, possivelmente pelo olhar terno, não daquele tipo meigo meloso. Eram uns olhos que transmitiam uma sinceridade, ingênua, porém, absoluta, de acordo com os filósofos da repartição. Talvez por isso, até os conhecidos recentes exercitavam certa tolerância com ele. Não incomodava na verdade. Não obstante, sempre que podia, falava do quanto gostava, daquele artefato, tanto que sucessivamente dava exemplares, iguais, de presente para as crianças. Discursava que a comunicação correta forjaria o bom caráter e mostraria o verdadeiro caminho.
Nas viagens, então, era o fiel companheiro e, contava que jamais ficou sem sinal, isso é, funcionava em qualquer lugar. O crédito para usar, só acaba com a morte do dono e ainda assim outros poderão usar; não precisava se preocupar com a falta de saldos e a ligação jamais caia além de parecer ter bateria infinita. Por dá-cá-aquela-palha lançava mão dele. Os números de emergência, assegurava conhecer todos. Tinha a quem ligar até quando estava triste; preocupado, em perigo, ou quando lhe acontecia uma adversidade - que os irônicos chamavam de desgraça e ele de incidente, mesmo que estivesse o mundo a lhe cair na cabeça. "Até os homens felizes estão sujeitos às intempéries", proclamava. "Mas se você tem com quem, falar; para quem pedir ajuda, e esse amigo tem competência e vontade de te ajudar tudo fica mais fácil", deslizava ele sem fazer questão de esconder a obviedade da frase. E naquela simplicidade insistia: Inclusive, para encontrar o segredo da felicidade, - esse sonho megalomaníaco da humanidade, - bastava boa vontade para achar o número certo. A unanimidade era a de que aquele objeto o fazia se sentir completamente protegido. Agora no caixão, os amigos em volta do corpo, não lamentavam a perda, quem sabe pela expressão alegre do morto. Que ele ria, muitos juraram por anos depois de seu enterro. A viúva soluçava com uma resignação desconcertante. As mãos do defunto pareciam acariciar seu objeto tão amado, tão ensebado que mal dava para ler na capa, Bíblia Sagrada.